sábado, 24 de dezembro de 2011

Um anjo para mim


Quando eu tinha por volta dos meus 20 anos eu me enamorei.  ... Eu me enamorei por duas mulheres.

Deixa eu me apresentar primeiro, meu nome é... .  Na realidade, meu nome não importa, então deixemos isso para lá. O que importa é quem eu fui e as pessoas que conheci.

Nasci numa família judia. Filho de pai e mãe judia, família influente no bairro de residência, seguia o protocolo. Ia ao templo, jejuava, fazia meus estudos da Cabala e lia diariamente, religiosamente, a Torá.
Minha vida era boa, sendo eu filho único de uma família abastada, nada nunca me faltava. Vivia como era o esperado e mamãe estudava com qual menina judia, frequentadora assídua da sinagoga, ela iria arquitetar meu casamento. Meu pai escrevia o meu futuro, eu iria substituí-lo a frente dos negócios. Seria no futuro o Senhor Meu Pai num novo corpo.

Certo dia, eu conheci Valéria no retorno do colégio, meus olhos brilharam. Ela era tão linda, meiga, gentil, educada. Valéria era tudo que eu queria e precisava. Valéria só tinha um defeito, não era judia. Mesmo assim apresentei-a ao meu pai. Acreditei haver compreensão no core paterno pelo meu desejo de quebrar uma regra tão importante. O judeu é filho de judia. Enfrentei a minha família e pedi, ao pai de Valéria, ela em namoro.

O tempo ao lado de Valéria era doce. Menina de coração puro e bom tinha sonhos de ajudar o mundo. Encantava-me a atenção que ela dispensava a todos que necessitavam. Não tinha criança enjeitada que dela não tinha um abraço. Não tinha idoso sem família que nela não encontrava uma neta. Nem os animais ela os largava a própria sorte. Valéria vê as qualidades nas pessoas ao lhes observar o coração. Via em mim o homem que eu desejava ser: respeitável, amável, pai de família e, acima de tudo, bom.

Logo depois conheci Margareth. Mulher mais experiente e com um filho. Deixei-me enlaçar por uma teia recheada de desejos carnais não antes experimentados por mim.

Fiquei balançado entre a doce Valéria e a caliente Margareth. A luxúria e não a razão me fez escolher a última. Claro que meu pai não apoiou a decisão. De todos os possíveis erros que cometeria na comédia de minha vida esse era sem a menor dúvida o mais gritante, segundo o olhar paterno naquele momento e o meu atualmente.

Uni-me a Margareth, criei seu filho, vivi longe de minha família, adoeci e fui abandonado. Tudo em pouco tempo. Fui deixado em um asilo, um manicômio.

Valéria, àquela quem abandonei, me procurou. Soube por alguém que estava doente. Valéria tomou ciência de minha condição física, psicológica e emocional. Valéria me resgatou do inferno das doenças.

Valéria limpou as minhas feridas, me alimentou, me medicou. Me apaixonei novamente por Valéria. Mas, ela somente tinha olhos para o noivo. Cheguei tarde. Como os jovens de hoje expressam, a fila andou.

Valéria não me abandonou, encontrou a clínica aonde me encontrava internado. Procurou os médicos, rogou por atenção e providências. Conseguiu que uma parenta assumisse a minha condição e os cuidados para comigo.

Hoje, 42 anos depois, estou em condições plenas de funcionamento integral do meu ser. Tenho consciência de tudo que vivi em todas as minhas vidas. Percebo o caminho que deixei de trilhar e o destino de felicidade para qual ele me levaria. Se em vida entendi que perdi a melhor mulher que Deus poderia ter reservado para mim. Na minha morte percebo que me afastei de Deus, me afastando do anjo da guarda que ele me destinou.

Escrevo, agora, do meu novo endereço, uma lápide em um cemitério.

Autor: Simone da Silva Figueiredo
(Escrito em 24 de dezembro de 2011)

sábado, 26 de novembro de 2011

Luiz e Luiza

A estrada que levava à fazenda era bucólica, ladeada de arbustos floridos e oferecia aos viajantes um espetáculo de cores e aromas. A beleza daquele trecho do mundo era tão especial, que mesmo as carruagens aparelhadas com seis bons cavalos diminuiam a sua marcha.

Luiz, um negro que vinha fugindo já há dois meses, caminhava pela estrada tranquilo admirando a beleza que o cercava. Avistou uma casa pequena, sentiu além do aroma das flores o cheiro convidativo do ensopado que estava sendo preparado para o almoço. Não resistiu, resolveu arriscar, a fome era avassaladora, pensou: "A negra velha naquela cozinha há de me ajudar. Ela conhece a minha dor".

Luiz sai da estrada e se direciona à pequena tapera de odor atrativo, vai direto para parte detrás da casa - não queria encontrar com a Sinhá. Ao adentrar a cozinha tem uma surpresa, não encontra uma negra velha à frente do fogão de lenha e sim uma linda e branca jovem.

Luiza era filha única de um pequeno proprietário de terras. Seu pai, viúvo há muitos anos, era o dono de um pequeno sítio sem escravos. Todo o trabalho era feito pelos dois. Luiza devia ter 16 anos, sua pele branca contrastava com o negro dos seus cabelos, lindos olhos amendoados de cílios longos e coloração esverdeada como a esmeralda chamavam a atenção em seu rosto de traços suaves. Ao ver Luiz, a menina-moça se assustou e quase gritou. As mãos de Luiz a impediram.

Luiz ficou paralisado com as mãos sobre os lábios e olhos fixos nos dela. Luiz afogava-se naquele lago de águas esverdeadas e não lutou contra a força que o prendia. Luiza ragiu e Luiz voltou a si. Prometeu soltá-la se não gritasse, ela concordou.

Luiza vivia a maior parte do tempo só. Seu pai trabalhava o dia inteiro. Faziam as refeições juntos, mas não conversavam. Nenhum homem tinha se aproximado tanto do corpo dela. Ela se sentiu zonza com o calor. Ela não conhecia essa sensação, mas gostou.

Luiz há muito tempo não chegava perto de uma mulher e aquela tinha o perfume das rosas da estrada, olhos aonde se podia afogar, o corpo quente e a voz suave. Luiz a beijou.

Luiz e Luiza se entrelaçaram num longo beijo que foi sucedido por outros. Seus corpos se uniram como se Deus os tivesse feito para o amor e esse somente pudesse ser realizado por esses parceiros. Cairam exaustos lado a lado e adormeceram.

Sérgio ficou viúvo muito jovem. Sua esposa faleceu o deixando com uma criança de um pouco mais de um ano. Desde então, se dedicava a criação da filha, aos cuidados com o sítio. As vezes ia à cidade para realizar compras, fazer trocas e desafogar as mágoas na casa das damas. Mas, nenhuma outra mulher foi escolhida como a senhora de sua vida.

Sergio, pai de Luiza, entra na tapera e surpreende os amantes dormindo no chão da cozinha. Parecia que o mundo desabava sob seus pés. Numa fração de segundos retornou ao dia de sua viuvez. Reviu todos os seus dias, todos os sacrifícios para manter o sítio e criar uma filha. Percebeu analisando a cena que a filha não fora forçada. Percebeu que a luxúria tomou conta. Pensou em sua honra, em sua vida e no escândalo. O que tornou seus olhos vermelhos foi pensar em sua honra.

Sérgio pegou a espingarda de caça e atirou na cabeça dos amantes enquanto dormiam. Sérgio atirou em sua própria cabeça.

...

Pelo centro da cidade caminha um rapaz alto e forte. Seu cotidiano frenético é tomado de muitas decisões. Ele caminha pelas ruas cheias de gente apressada falando no seu celular. Sem perceber caminhou para fora da balbúrdia. Olhou em volta e não reconheceu o lugar. Parou de falar ao celular. Sentiu o odor do ensopado vindo de uma taberna convidativa. Percebeu que tinha fome e que não comia tranquilamente há muito tempo. Adentrou a taberna.

A taberna era um restaurante hoje em pleno século XXI, mas no século XIX tinha sido apenas uma tapera com uma triste história de amor assassinado. Servia pratos históricos e a decoração se mantinha a mesma. Ao entrar se via a cozinha.

O rapaz ao entrar se sente transportado no tempo. Vê a cozinheira e seu coração acelera. Tomado de uma emoção completamente nova aproxima-se da cozinheira. Posso lhe falar? Meu nome é Luiz. Ela se vira e responde: Prazer, eu sou Luiza.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 18 e 19 de novembro de 2011)

domingo, 9 de outubro de 2011

Inocência Perdida - Amor encontrado

_ Mamãe, que barulheira é essa tão cedo?
_ Ih, filha! Esqueci de avisar. Os vizinhos novos chegam hoje para ocupar a casa de baixo.

Da janela.
_ Mãe, eles têm tanta coisa. É um casal e tem um menininho com eles. Tão bonitinho parece esperto.
_ Ahammm!
_ Mãe, a moça é bonita. Ela está com uma blusa igual àquela sua.
_ Qual?
_ Aquela florida que a senhora comprou no mês passado.
_ Já sei que é uma moça de bom gosto.
_ Mãe, corre aqui.
_ Que foi, menina?
_ O marido dela é bonitão. Um gato.

As duas olham para o rapaz. A feminilidade presente e a futura apreciam o mesmo espécime.

...

Passa-se as semanas e a rotina se instala novamente. Os novos vizinhos já não são novidade. A vida entra nos trilhos.

A menina pede na segunda, quarta e sexta licença ao rapaz para passar pela área comum das duas casas. Ela precisava chegar à área de serviço. O rapaz está em casa nestes dias e acha tudo normal. O menininho faz uma festa para a menina sempre. Ela é muito paciente e gentil com crianças.

Na casa dos novos vizinhos tudo segue bem. A esposa jovem e bonita sai cedo e volta tarde todos os dias. O rapaz, por ter um horário de trabalho mais flexível, cuida do filho. Leva na creche, vai para o trabalho, busca na creche, faz o jantar. O casal tinha uma vida boa. Isso chamou a atenção.

Na casa de cima, o circo das frustrações encena seu espetáculo habitual. Mãe com três filhos, não tem mais tempo para estar bonita. Pai e marido tem de trabalhar muito para garantir o sustento, não tem mais tempo para ver os encantos da esposa. Filhos, duas crianças arteiras e a mais velha que desperta para a adolescência. O relógio da bomba começa a contagem regressiva.

...

Passa-se semanas e todas as coisas estão no lugar. Não tem mais caixas na sala. O caminho para a creche é feito no automático. A tinta nova já não mais deixa seu cheiro irritante.

A vizinha vem estender a roupa na área comum. É uma menina bonitinha. Meu filho sempre fica muito feliz quando ela chega. Ela sempre brinca com ele cantando músicas que ele gosta. É uma menina nova ainda, acho que tem doze anos, vai ser uma moça linda.

Os vizinhos de cima parecem morar a muito tempo nessa casa. Conhecem todos no bairro. O marido sai cedo e volta tarde, sempre muito cansado. Às vezes trabalha de madrugada. A esposa é bonita, mas não está feliz. Não é fácil cuidar de três sozinha. Eles devem estar casados há muito tempo. Não parecem namorar.

...

Quatro horas.

_ Licença, senhor. Posso estender a roupa. Diz a menina.
_ Claro, esteja a vontade. Diz o rapaz.

...

Mês seguinte, às quatro horas.

_ Licença. Posso estender a roupa. Diz a menina.
_ Claro. Algo mudou em você. Diz o rapaz. O que foi?
_ Não sei, apenas cortei o cabelo.
_ Você fica bem assim. Bonita.

...

A noite, a jovem esposa liga avisando que não virá para casa. Deverá ir à casa de uma tia. Problemas de família à sanar.

Na cama de casal, o rapaz viaja nos pensamentos. A menina é linda. Ela parece uma flor prestes a desabrochar. E sua mente é inundada de pensamentos quentes por aquela jovem.

...

Duas semanas depois, às quatro horas.

_ Tô entrando. Vou estender a roupa.
_ Claro. Posso ver seu rosto. Diz o rapaz.

Ela cora e baixa o semblante. Ele lhe levanta o rosto segurando o queixo. Olhos curiosos o observam. Lábios carnudos o convidam.

Ele a beija. Ela corresponde.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 06/10/2011)

sábado, 1 de outubro de 2011

Uma princesa as avessas.

Era uma vez uma linda menina que nasceu num belo castelo nos Alpes Suíços.

Espera a história não é essa.

Era uma vez uma menina que nasceu no calor tropical de dezembro. Filha única e neta única, ela era a coisa mais importante naquela família. Todos se meteram na sua criação.

A bebezinha foi crescendo e mostrando ser extremamente inteligente. Andou cedo, falou cedo e leu, obviamente, cedo. Os seus feitos eram contados aos vizinhos e amigos.

A menina foi para a escola. Como era de se esperar, as notas mais altas eram dela. Em casa era educada, gentil e responsável. Repassava as lições todos os dias. Ninguém a manda estudar. O fazia por conta própria. Um prodígio de menina.

A menina que crescia ganhava elogios à sua inteligência todos os dias. Na escola, os colegas com dificuldades recorriam à ela. Ela auxiliava a todos. Suas notas permaneciam elevadas. Ganhou bolsa de estudos. Seu pai contava à todos, falava sobre a inteligência e a esperteza da menina.

A menina foi crescendo e outras referências passaram a ter importância. Não queria ser apenas inteligente. Queria ser bonita.

Perguntou à mãe:
_ Sou bonita?
_ Não. Você é inteligente.

Com isso, um decreto caiu sobre sua cabeça. Ela pensou e assumiu: "Sou uma NERD feia". O tempo passou e ela nunca mais tocou nesse assunto. Os elogios à inteligência continuaram.

Ao fazer quatorze anos a menina trocou de colégio. Foi para o ensino médio. Um conjunto de rostos diferentes. Não os conhecia. Ninguém sabia que ela era inteligente. Mas, feia todos veriam. Ficou com medo.

Na primeira semana de aula ainda, ela e os demais alunos novos foram cercados em todos os ambientes da escola. Descobriu que a escola tem quatro castas: professores, auxiliares, veteranos e eles, os calouros. A mais baixa das castas.

No intervalo da primeira sexta-feira letiva, os veteranos começam a selecionar os calouros. Aqueles que eles teriam o prazer de judiar. Arrumados no pátio, os calouros estavam tal qual os negros expostos no pelourinho a espera do comprador. No meio dos veteranos um rapaz se destacou pela simpatia e beleza. Ele caminhou até ela. A separou para ele dizendo: "Essa é a minha namorada. Ninguém toca." E lasca um beijo na boca da ainda menina.

Ela sentiu asco e nojo. Se sentiu exposta como carne no açougue. Foi até ele e o interpelou.
_Porque?
_ Você é a mais bonita. Tem que ser minha.

O odiou pelo seu primeiro beijo ser desse jeito.
O amou por lhe revelar que é linda.


Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 01/10/2011)

sábado, 17 de setembro de 2011

Cantigas de Roda

Terezinha de Jesus

O Primeiro me chegou como amigo.
Conversamos sobre tudo.
Vivemos aventuras.

O Segundo me chegou como marido.
Planejamos sobre tudo.
Tivemos filhos.

O Terceiro me chegou como amante.
Amamos tudo.
Criamos nada.

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Atirei o pau na outra
Mas, a outra não morreu
Dona Chica admirou-se
Com o estrago que ela fez.

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Fui na Espanha
buscar a minha cabeça
Rosa e vermelho
Da cor do meu coração.
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Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em: 15/09/2011)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Keith

Simone, Claudia e Erica rompem pelo portão da casa de Itaipu. Dezessete, dezesseis e quinze anos de pura eletricidade. Atrás delas a voz forte de Luiz anuncia: "Djalma, chegamos!". Simone é filha de Luiz. Claudia é filha de Cinéa. E Erica é filha de Djalma. As três são além de amigas, primas. Luiz, Cinéa e Djalma são irmãos. E assim inicia-se mais um delicioso final de semana na casa do tio.

Djalma chega atraído pelos chamados e pela balbúrdia que o grupo cria na casa antes silenciosa. Djalma tinha alugado a casa de quatro pavimentos para ele e a terceira esposa – daqui a alguns anos ela virá a ser chamada de Tia Rita apesar de ter apenas um pouco mais de vinte anos. Ele tem mais de duas décadas que ela, mas no coração ambos tem a mesma energia e alegria pela vida. Eles ainda não tinham filhos, mas Djalma tinha três meninas do primeiro casamento (Andréa – 17, Erica – 15 e Adriana – 11) e dois meninos do segundo (Henrique – 9 e Guilherme – 17). A casa tinha de ser grande, sua família é grande.

Luiz retira Djalma dos pensamentos.

_ Mano, aonde coloco as coisas para o churrasco?
_ Dê a Rita. Ela está na cozinha.

Djalma olha para as meninas e grita:
_ Erica! Venha abraçar o papai. Simone e Claudia venham com o tio. Cadê a Adriana?
_ Tio, ela está dormindo no carro. Meu pai já vai buscá-la.

Adriana chega correndo.
_ Acordei.

Djalma estão anuncia:
_ Tenho uma surpresa para vocês. Venha Luma!

Nisso adentra no pátio superior um pastor alemão manto negro enorme. Coloca as duas patas no peito de Djalma e lhe lambe a face. Djalma é um homem negro, forte de 1.80 m de altura. A cadela se aproxima de nós. Ficamos com medo.

E Djalma diz:
_ Ela é de vocês. Podem brincar a vontade. Ela é mansa.

E foi assim que conheci a mãe da minha primeira filha. Alguns anos depois ganhei a Keith de Luma. Próximo do meu aniversário de 23 anos.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 09.09.2011
fato ocorrido em algum final de semana entre 1987 e 1988)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Um anjo em minha vida

Simone saía todos os dias da faculdade. Na intenção de apressar o seu retorno, sempre pegava carona. Certa noite, uns colegas de classe ofereceram carona para próximo da sua casa. Teria ainda de pegar uma condução. O que Simone não sabia é que a linha de ônibus pretendida tinha o último horário muito cedo.

Desceu do carro e seus colegas continuaram no caminho. Tomou a direção da parada de ônibus, ao chegar perguntou aos demais sobre a condução que desejava. Teve a triste notícia que o último carro havia passado à meia hora. Ninguém sabia lhe informar como chegava a sua residência. Com o adiantado da hora começou a temer pela sua segurança.

Simone começou a olhar à esmo. Em seus olhos uma lágrima teimava em sair. Então, ela reza. Declama baixinho o Salmo 23 e pede à Deus que acampe os seus anjos ao seu redor, como a avó havia lhe ensinado. Suas preces não chegaram ao fim quando ela avistou um rapaz alto, forte e moreno se aproximando. Ele estava vestido de branco e carregava uma pequena valise. Chegou se apresentando.

_ Boa noite, Simone. Meu nome é Marcelo. Posso lhe ajudar?

Atônita, Simone responde:

_ Obrigada. Você sabe que ônibus eu posso pegar? Preciso ir para casa.

Conversaram e ela lhe explicou onde residia e que fazia faculdade. Ele lhe contou que era estudante de medicina na mesma Universidade que ela e que estagiava na unidade local dos "Anjos do Asfalto". Não tardou e outra condução chegou. Ela agradeceu e partiu. Ele parecia vigiá-la.

No dia seguinte, ela resolveu procurá-lo no hospital da faculdade. Queria muito lhe agradecer por tê-la mantido calma e a feito chegar em segurança na sua casa. E como ele havia dito que era seu dia de plantão, calculou que isso não seria um problema.

Procurou-o na unidade de traumatologia. Recebeu uma notícia chocante. Marcelo morreu há alguns meses. Ele estagiava na unidade dos "Anjos do Asfalto" e era um excelente aluno.

Simone entendeu. Marcelo foi o anjo enviado por Deus.


O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará.

Senhor, Meu Deus, estou com muito medo. Acampe seus anjos ao meu redor. E, por favor, dê ordens a eles para que cuidem de minha segurança.

Pai nosso, que estais no céu. Santificado seja o Vosso nome. Venha a nós o Vosso reino. Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai os nossos pecados e não nos deixeis cair em tentação.

Amém

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 09.09.2011
fato ocorrido em 1994)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A Igreja

Thiago adentra a nave da igreja. A pequena construção do século XVI se mantém de pé; apesar do castigo do tempo, através dos açoites das intempéries. A nave de teto elevado aonde ainda era possível avistar desenhos de anjos, tinha buracos por onde a chuva caia em cachoeira.

Thiago buscou abrigo para a chuva. Achou que a igreja seria um lugar seco e seguro. Seu corpo era sacudido pela febre e a dor que a falta de alimento trazia. Se aproximou daquilo que foi um dia um belo altar e que tinha a qualidade de ser o ponto mais seco da igreja. Adormeceu em meio as dores.

Thiago ouviu chamar seu nome. Acordou e viu a mais bela igreja. Aroma de rosa e sândalo invade suas narinas. Ele percebe que as dores o abandonaram. O lugar outrora molhado estava seco. O teto apresentava, agora, pinturas perfeitas sobre o céu dos anjos.

Thiago tem a sua atenção chamada pela luz na porta. Do mesmo lugar de onde vinha o som que evocava seu nome. A luz clara, intensa e acolhedora se aproxima. Começa a se revelar, com a proximidade, o contorno de um rosto belo e tranquilo. O leve som de bater de asas é ouvido.

Thiago olha para trás e se vê. Chora. Sente no seu novo ser um abraço quente e no seu coração a calma que uma vida inteira de sofrimentos jamais provou.

Thiago dorme calmamente.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 31/8/2011)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Paola

Paola ouve música no rádio. Zapeia pelas estações pulando as notícias e as propagandas. Dança no compasso daquelas que somente ela escuta. A música berra em seus ouvidos. Os fones parecem que vão explodir.

Paola aprecia a todos que a observam em sua loucura particular. Vasculha os olhares e lê as mentes à procura de alguém. Procura por outro insano como ela. Tem de ser um insano belo. Os feios estão a salvo.

Paola é uma morena de um metro e oitenta de altura e olhos verdes. Seus olhos amendoados e sua boca carnuda lhe conferem uma beleza impar. O seu corpo esguio não revela a força que Paola tem, pelo contrário, lhe confere uma certa aura de fragilidade. Ela usa isso a seu favor.

Paola encontra um olhar especial na multidão. Uma mariposa especial na nuvem. Enxerga um brilho azul sobressaindo na pele alva da face aquilina. Paola o escolhe e inicia um jogo de simulações. No jogo a presa se enxerga como caçador. A presa se aproxima de Paola.

Paola olha, sorri e sai do metrô. O belo estranho, a linda presa, a segue. Paola levemente diminui o passo para que o belo a alcance. Ela aprecia o jogo. Aumenta as passadas para que ele também o faça. Completando assim a conexão. Fechando o nó entorno da presa.

Paola sai da estação e ruma em direção a um conjunto de vielas e becos escuros. Ermo e sombrio os qualificam. Não é lugar para uma moça linda e comum, mas Paola é especial. O belo a segue e a encontra numa das curvas esperando por ele.

_ Você demorou.
_ Você é muito rápida. Sou Lucas.
_ Sou Paola, o que deseja?
_ Saber que música você escuta e a marca do seu batom?
_ Escuto 'Sympathy for Devil' e o batom não sei.

Paola pensa:
"Errei. Outro hedonista homossexual. Vou continuar com fome."

Largou o belo no meio do beco e foi assaltar um banco de sangue.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 01/09/2011)

domingo, 4 de setembro de 2011

Pós Doctor

Daniela recebe uma carta. A universidade que ela almeja a convida para fazer o 'Pós Doctor'. Tudo estaria do jeito que ela sonhara, instituição, bolsa, amigos, país. No entanto, há seis meses sua mãe ia e vinha do hospital. Uma internação após a outra. CTI, massageador cardíaco, prolongação da vida se tornaram expressões cotidianas. Como unir o sonho e o pesadelo? Como o sonho ocorre neste momento?

Na casa silenciosa, um ritmo diferenciado no monitor cardíaco informa à Daniela, algo foge do normal. Sobe as escadas às pressas, mas tenta se acalmar na porta do quarto da mãe. Entrou. Sua mãe, em meios aos tubos, a observa. Chama e convoca à aproximação com um olhar. Daniela se aproxima e a questiona sobre como estaria se sentindo. A mãe pega na mão dela e se despede, pedindo antes: "Seja feliz e faça tudo que tiver de fazer para isso".

Daniela escreveu para a instituição explicando a situação, cuidou do enterro e dos próprios documentos. E apesar da dor, três dias após o sepultamento, Daniela fechou o apartamento e zarpou rumo ao conhecimento. Viajou de preto.

No novo país foi bem recebida pelos velhos amigos e novos. Todos cientes de sua perda se concentravam em tornar tudo mais fácil para ela. O tempo passou. Os estudos apertaram. Daniela passava cada vez mais tempo estudando, tempo com os livros.

Certa noite, sente necessidade de um livro às 20:30 horas. Corre à biblioteca, com a certeza da inutilidade do ato. A biblioteca fechava às 20 horas. Para sua surpresa a porta da biblioteca estava aberta.

Daniela entra e encontra uma jovem bibliotecária. Sente por ela uma afeição inexplicável. A bibliotecária muito competente a ajuda. Dias se passam e Daniela passa a habitualmente utilizar a biblioteca no horário noturno, com a desculpa de ser mais tranquilo. A verdade é que se afeiçoara à bibliotecária.

Tudo correu bem. Daniela terminou o 'Pós Doctor' e voltou ao Brasil. Reabriu o apartamento, e com a calma que os quatro anos ausentes propiciou, arrumou os pertences da sua mãe. Viu as roupas, objetos de arte, jóias e achou uma caixa de fotos. Pensou, vou ver como minha mãe era quando jovem. Só lembro do rosto da minha mãe a partir dos meus sete anos, ela com cinquenta.

A maioria das fotos eram de sua mãe com ela. Já estava perdendo as esperanças quando achou um envelope escrito: "Formatura em Biblioteconomia - Turma de 1956". Um sorriso invadiu seu semblante. Abriu o envelope e viu a foto. Agora, com o espanto estampado na face, vê a bela jovem bibliotecária do seu 'Pós Doctor' ao lado de seu avô. Lê o nome de sua mãe no verso. Entendeu que nunca se separaram.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 05/09/2011)

Nasce o segredo

Era um dia como outro qualquer para muitos, para Simone era um dia especial. Após quarenta e duas semanas carregando um tesouro, tudo indicava que o segredo seria revelado. Acordou às nove horas de uma manhã ensolarada de janeiro, era o vigésimo sexto dia do ano de 2002. Ao acordar, sentiu um incômodo no baixo ventre, uma leve dor intermitente. Lembrou-se: ainda não comprei a banheira.

Concentrou-se em colocar o incômodo e a dor crescente trancados num canto de sua mente. Levantou-se e preparou o café. Tudo o mais estava arrumado: quarto, berço, lençóis, carrinho, mala, etc. Faltava a banheira, lembrou-se novamente.

Acordou o amor, comunicou que o café estava na mesa e que o curso da vida gritava em seu ventre. O amor se assustou, mas ela o acalmou, dizendo que tudo estava bem. Apressou-se em verificar as trancas no canto de sua mente.

Tomou o último café da manhã calmo ao lado do amor e saíram para comprar a banheira. Na loja, a horda de desconhecidos se aproximava. Queriam tocar o protuberante abdômen, declamar profecias e ditar receitas infalíveis. Ela somente tinha dois desejos: sentar e a banheira; e não necessariamente sabia a ordem dos desejos.

Saíram da loja para a Maternidade. A dor foi pungente. A criança estava enrolada em seus cordões. Duas voltas no pescoço. Mas, tudo bem. Às quinze horas e doze minutos, nasceu Luiza, mamãe e papai.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em:27/08/2011)

Poesia - Amantes III

Oi
estou no lugar de sempre
você vai poder jantar?

...

Oi
estou no lugar de sempre
e hoje você vai dormir?

...

Oi
estou no lugar de sempre
que horas você precisa acordar?

...

Bom dia!


Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 20/08/2011)

Poesia - Amantes II

Bom dia, João! ................... Bom dia, Joana!
Bom dia, Paulo! .................. Bom dia, Paula!
Hora da Escola! .................. Hora da Escola!
Já calçou o tênis? ............... Penteou os cabelos?
Vamos embora para ................ Vamos, o carro
não se atrasar. .................. chegou.

................... Tic, Tac,
.......................Tic, Tac,
..........................Tic, Tac,
............................Tic, Tac

.......................Ai que saudades!
.......................Como foi o seu dia?
.......................Pena que temos pouco tempo.
.......................Me esperam em casa.

...............................UFA!
.............................Foi bom.

...............................Te Amo,
...............................Tchau!

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 20/08/2011)

Poesia - Amantes I

Queria dar beijinhos em você
Como em medalha de padroeiro
que carrego junto ao peito

Queria lhe fazer afagos
como em gato de armazém

Mas, me contento em estar
no seu cotidiano
como parte de suas memórias
ou de seus esquecimentos.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 20/08/2011)

Poesia - Cotidiano

Amor são 5 horas
Hora de levantar.

Amor são 5 e meia
Tenha um excelente dia!

...
Silêncio barulhento
...

Oi amor já são 5 horas?
Você chegou mais cedo.
Que saudade!

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 20/08/2011)

O passeio

Laura chegou na cidade à noite. Caminhava por vielas mal iluminadas e mal cheirosas. Chegou no lado podre da cidade. As ruas, nesta parte, eram habitadas por ratos gigantescos. Andavam num transitar frenético uma equipe do prazer mundano. Por lá se encontravam, com todos os sentidos que este verbo pode conter, prostitutas e cafetões, ladrões e assassinos, traficantes e viciados.

Laura avista uma luz ao mesmo tempo em que a musica desconexa invade seus ouvidos. Laura entra no inferninho. Moças em trajes sumários dançam. Garçons servem drinks coloridos e esquisitos. Fumaça de todo o tipo de cigarro perfuma o ambiente. Neste momento, Laura vê Marcelo.

Marcelo é um rapaz elegante, alto e com os piores 27 anos já relatados. Marcelo está com uma moça em seu colo enquanto outra dança para seu deleite. Uma terceira moça lhe traz uma bandeja. Nela e possível ver as carreiras de pó branquíssimo. Marcelo as inala. Rapidamente entra num estágio de euforia exagerada. As órbitas oculares aumentam de tamanho e ele transpira exageradamente. Em poucos minutos começa a sair pelos cantos de sua boca uma baba branca e viscosa. A língua despenca como se fosse uma gravata.

Laura pacientemente assiste a tudo. Marcelo se levanta não compreendendo a ausência repentina da excitação e da música. O odor do cigarro não mais existe. Tudo ao redor de Marcelo se torna um borrão. Marcelo enxerga Laura. Vê a moça alta, elegante, loira e de pele alva. A moça linda o enxerga. Ele a percebe com clareza, diferente de todo o resto. Marcelo caminha em direção a Laura.

Marcelo interpela Laura como se ela tivesse todas as respostas para as dúvidas que brotaram em sua mente. Laura calmamente levanta-se e caminha para fora. Marcelo a segue.

Do lado de fora, em meio à noite e ao lugar fétido. Marcelo agarra o pulso de Laura. Ela se volta e olha dentro dos olhos, colocando dentro da mente dele um filme dos seus 27 anos dedicados à devassidão. Laura o beija e suga o resto das suas dúvidas acerca da vida, plantando em seu coração a certeza da morte.

Marcelo chora. Laura o abraça e o eleva. Caminham juntos rumo a escuridão formada por aqueles que não tem luz.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 31/08/2011)

Saudade

Atualmente sinto saudades. Sinto saudades do que vivi há muito tempo e do que aconteceu ontem. Sinto saudades do meu pediatra e do meu cardiologista. Sinto saudades de um ursinho de plástico que tinha aos 3 anos e que pintei com a minha coleção de esmaltes. Sinto saudades do livro que terminei de ler na semana passada.

Por anos não senti saudade. A vida era uma seqüência de fatos com intervalos tão curtos que a saudade não tinha tempo para se manifestar.

A saudade, que sinto atualmente, tem personificação. Mora no museu das minhas memórias. Nos tempos apressados de outrora, ela era um quadro guardado no estoque, por não estar de acordo com o tema exposto. Hoje, a saudade, é uma senhora de abdômen globoso.

Neste ponto preciso fazer uma retificação, ou uma nova orientação, para o desenvolvimento deste texto, que me atrevo chamar de relato. A saudade tem de passar do nome apenas de um sentimento para o nome de um personagem. O verbete precisa trocar o ‘s’, este deixará de ser tratado em minúsculo e passa para maiúsculo. Saudade é nome.

Saudade é a senhora que reside no museu das minhas memórias. Saudade, uma senhora redonda, passeia pelo museu. Por estes dias esta sentada no saguão, a informar a todas de sua existência.

Por vezes, a noite, ela faz a ronda dos salões. Pensa que está no Louvre e procura obras raras, pensamentos guardados. Apega-se a tudo que é importante, como tive amores. Busca peças no estoque e as expõem nos salões. Tenho encontrado tantas fotos, cartas e lembranças. Com todo esse exercício a Saudade se cansa, então senta. É quando sinto um aperto no peito e muita dificuldade de respirar. Ainda bem que ela sempre levanta.

O que faço quando ela não mais levantar?

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 01/09/2011)

Encontro

Estamos no vigésimo sexto dia do mês de agosto no ano de nosso Senhor de dois mil e onze. Estou oficialmente a seiscentos e trinta e três dias separada. São quase dois anos sem um corpo másculo e quente ao meu lado diariamente. Sinto falta.

Ao terceiro dia deste mês conheci um senhor. Sua alcunha é um segredo que não revelarei. Fomos a uma exposição, a um restaurante e caminhamos a pé pelo centro da cidade. Na chuva dividíamos animadamente uma pequena sombrinha. O que serviu para nos aproximar mais. Apesar da insanidade confirmada que é confiar em alguém recém conhecido, não consegui agir diferente. Quando voltei a me confrontar, a lembrar de minha própria existência, as nossas bocas já estavam unidas. E por minutos, que a inconsciência do entorno não me permite precisar a quantidade, trocamos beijos cheios de paixão e luxúria.

Esta, da minha parte, a luxúria, vinha trazida pela visão do belo espécime masculino ao meu lado adicionado pelo longo período sem sentir o prazer desse tipo de toque.

Nesse momento percebo que todo e qualquer resquício de racionalidade me abandonou. E aconteceu em concomitância com o repouso de suas mãos másculas e quentes na porção final de minha coluna. Nada mais a frear. Nenhum pensamento racional me envolvia. Me deixei levar.

Autor:
Simone da Silva Figueiredo
(escrito em 26/08/2011)