quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um grão entre mil


Na cozinha da chácara o café é coado de manhã bem cedo. A mesa está posto o pão, a cuca de chocolate e a chimia de framboesa. O leite já fervido também ajuda a formar o coquetel de odores e sabores da manhã. Todos adentram a cozinha, marido, filho, filhas. Ela sabe que terá muito trabalho no dia de hoje, como em todos os dias, mas aproveita a cena por alguns segundos orgulhosa da família que formou. Então, leva o bule de café para a mesa.

Após muita balbúrdia, após o vanerão das xícaras, colheres, manteiga que dançaram sobre a mesa a fim de atender a todos, eles se foram. O silencio se instala novamente na cozinha. Cabe-lhe a tarefa de recolher tudo, lavar a louça, separar a carne do almoço. Tarefas rotineiras executadas com o prazer de ver o marido forte ir trabalhar e os filhos crescidos irem para a escola.

Em meio a tudo igual, o seu peito se aperta. Ela chega à porta da casa e vê sua irmã se chegando pelo caminho. O semblante estava pesado. Ela se preocupa e ansiosa caminha até a irmã. O seu alívio é tão grande quando a irmã lhe acalma dizendo que todos em sua família estão bem, que ela mal escuta o resto da história. Quando retoma a ciência das coisas, a irmã está lhe contando que o irmão delas se uniu a uma moça, mas que as crianças estão em situação de emergência por falta de alimentos.

As duas irmãs vão para a casa da chácara, apenas para deixar um bilhete, pegar dinheiro e alguns cobertores. Era uma manhã muito fria. Elas chegam ao local de morada do irmão e conhecem a cunhada. Esta informa não ter condições de criar as crianças e que o irmão delas não vinha para casa há muito tempo. A conversa é curta, a moça passa a guarda dos dois meninos a elas, as tias.

Sua irmã pega rapidamente com um dos cobertores o menino mais novo, de apenas seis meses. Ele estava muito magro e ela o protege. Para ela, olha de repente, um menino tímido, que tenta sanar sua curiosidade sobre as mulheres e se proteger na saia da mãe. O menino de um ano e meio sente medo do que não sabe. Ela vendo tudo isso nos olhos do menino se aproxima com cautela. Não quer espantá-lo. Ele, o menino, vendo o cuidado dela e tomado de curiosidade, sorri. É a senha para que ela se aproxime, o coloque dentro de um cobertor e em seus braços.

Ao chegar a casa, ela verifica espantada que o seu anjinho estava pequeno e magro. Ele ardia em febre. Ela improvisou um berço para ele numa das gavetas da cômoda e lhe preparou um caldo de galinha. E quando o anjinho adormeceu, ela rezou. Ela rezou por três dias consecutivos, o tempo da febre. Ela se interpôs na frente do marido, defendendo a criança e a nomeando de presente de Deus.

Seu anjinho cresceu, quebrou o braço, foi para a escola e tirou notas altas. Como todos os anjinhos fez birra, mas também deu muito orgulho. Um dia o anjinho voou para longe, foi morar em outra cidade.

Após quase trinta anos da chegada do anjinho em sua casa, numa tarde de primavera chegou outro anjo. O segundo anjo era uma moça já crescida. Diferente fisicamente dela, ela tinha olhos azuis e o anjo olhos negros, ela cabelos ralos e lisos e o anjo cheios e cacheados. A pela dela era alva e do anjo era negra. Ela falava alemão e o anjo falava português. As duas passaram dois dias juntas. Na linguagem do coração se entenderam e ficaram amigas.

O anjo de pele negra sou eu. Ela era a minha sogra. Contou-me essa história e me mostrou a gaveta-berço e me disse o quanto amava o filho-anjo. Mas, o verdadeiro anjo é essa senhora que amou, criou e deu seu coração a mais um filho.

Autor: Simone da Silva Figueiredo
(Escrito em 04 de janeiro de 2012)


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