Na cozinha da chácara o café é
coado de manhã bem cedo. A mesa está posto o pão, a cuca de chocolate e a chimia de framboesa. O leite já fervido
também ajuda a formar o coquetel de odores e sabores da manhã. Todos adentram a
cozinha, marido, filho, filhas. Ela sabe que terá muito trabalho no dia de
hoje, como em todos os dias, mas aproveita a cena por alguns segundos orgulhosa
da família que formou. Então, leva o bule de café para a mesa.
Após muita balbúrdia, após o
vanerão das xícaras, colheres, manteiga que dançaram sobre a mesa a fim de
atender a todos, eles se foram. O silencio se instala novamente na cozinha. Cabe-lhe
a tarefa de recolher tudo, lavar a louça, separar a carne do almoço. Tarefas
rotineiras executadas com o prazer de ver o marido forte ir trabalhar e os
filhos crescidos irem para a escola.
Em meio a tudo igual, o seu peito
se aperta. Ela chega à porta da casa e vê sua irmã se chegando pelo caminho. O
semblante estava pesado. Ela se preocupa e ansiosa caminha até a irmã. O seu
alívio é tão grande quando a irmã lhe acalma dizendo que todos em sua família
estão bem, que ela mal escuta o resto da história. Quando retoma a ciência das
coisas, a irmã está lhe contando que o irmão delas se uniu a uma moça, mas que
as crianças estão em situação de emergência por falta de alimentos.
As duas irmãs vão para a casa da
chácara, apenas para deixar um bilhete, pegar dinheiro e alguns cobertores. Era
uma manhã muito fria. Elas chegam ao local de morada do irmão e conhecem a
cunhada. Esta informa não ter condições de criar as crianças e que o irmão
delas não vinha para casa há muito tempo. A conversa é curta, a moça passa a
guarda dos dois meninos a elas, as tias.
Sua irmã pega rapidamente com um
dos cobertores o menino mais novo, de apenas seis meses. Ele estava muito magro
e ela o protege. Para ela, olha de repente, um menino tímido, que tenta sanar
sua curiosidade sobre as mulheres e se proteger na saia da mãe. O menino de um
ano e meio sente medo do que não sabe. Ela vendo tudo isso nos olhos do menino
se aproxima com cautela. Não quer espantá-lo. Ele, o menino, vendo o cuidado
dela e tomado de curiosidade, sorri. É a senha para que ela se aproxime, o coloque
dentro de um cobertor e em seus braços.
Ao chegar a casa, ela verifica
espantada que o seu anjinho estava pequeno e magro. Ele ardia em febre. Ela
improvisou um berço para ele numa das gavetas da cômoda e lhe preparou um caldo
de galinha. E quando o anjinho adormeceu, ela rezou. Ela rezou por três dias
consecutivos, o tempo da febre. Ela se interpôs na frente do marido, defendendo
a criança e a nomeando de presente de Deus.
Seu anjinho cresceu, quebrou o
braço, foi para a escola e tirou notas altas. Como todos os anjinhos fez birra,
mas também deu muito orgulho. Um dia o anjinho voou para longe, foi morar em
outra cidade.
Após quase trinta anos da chegada
do anjinho em sua casa, numa tarde de primavera chegou outro anjo. O segundo
anjo era uma moça já crescida. Diferente fisicamente dela, ela tinha olhos
azuis e o anjo olhos negros, ela cabelos ralos e lisos e o anjo cheios e
cacheados. A pela dela era alva e do anjo era negra. Ela falava alemão e o anjo
falava português. As duas passaram dois dias juntas. Na linguagem do coração se
entenderam e ficaram amigas.
O anjo de pele negra sou eu. Ela
era a minha sogra. Contou-me essa história e me mostrou a gaveta-berço e me
disse o quanto amava o filho-anjo. Mas, o verdadeiro anjo é essa senhora que
amou, criou e deu seu coração a mais um filho.
Autor: Simone da Silva Figueiredo
(Escrito em 04 de janeiro de 2012)
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